sábado, 27 de janeiro de 2007

No tempo em que os animais falavam

Não é de hoje nem vai acabar amanhã a situação em que os poderosos – ainda que não, necessariamente, todos – subjugam os mais fracos. No entanto, reconheça-se, já foi pior. Tempos houve em que os poderosos se achavam dotados de inspiração divina e, de tal sorte, consideravam perfeitamente naturais e razoáveis os privilégios de que gozavam.
Na época do Rei David – sim, daquele que (quando pastor) derrotou com uma funda o filisteu Golias – este não se contentou em cobiçar a mulher de Urias, o heteu. Fez mais: encomendou ao seu general Joabe uma batalha com os filisteus cujo principal propósito não era combater o inimigo, mas sim arranjar uma forma de Urias morrer em combate. Quando os mensageiros levaram ao rei a notícia da derrota, na qual pereceram muitos do povo de Israel, David só quis saber se Urias tinha, de facto, morrido, para assim poder desposar a mulher do rival. De tal casamento, o segundo rebento teve por nome Salomão – sim, o tal que tinha grande sabedoria – o qual, por sua vez, com muita sensatez, mandou matar o irmão Adonias, assim como Joabe, não fossem estes pôr-lhe em risco a coroa de David.
Como eram belos os tempos em que os animais falavam.
Mas espera aí. Quem falou em passado? Hoje as coisas são diferentes, no entanto continua a haver animais a falar. Querem exemplos? Que dizer então daquele passarão que disse que a culpa da subida do preço da electricidade era dos consumidores? Já pagamos mais 24% que a média comunitária, mas ainda assim somos culpados. Depois somos também culpados de as nossas empresas não serem competitivas, quando na generalidade dos factores produtivos – à excepção do factor trabalho – estamos em desvantagem para com as empresas estrangeiras. Que dizer de um certo Governador vir anunciar que os problemas da Segurança Social ficaram resolvidos por décadas, graças às poções milagrosas deste Governo? Como? À custa dos mesmos de sempre. Ainda que se reconheça que algo teria de ser feito, a verdade é que se obteriam resultados mais evidentes se fossem combatidas as mordomias daqueles que, no seio do poder, auferem compensações significativamente acima das suas comparticipações para o sistema. Que dizer das subidas desmesuradas dos nossos impostos, de tal modo absurdas que nem sequer geram maiores receitas, desviando-as para la Hacienda espanhola? É o caso dos combustíveis, do tabaco, etc. Não faz mal que as gasolineiras vão falindo nas regiões de fronteira. Então e as reduções nas comparticipações dos medicamentos? E que tal pagar IMT (antiga SISA) duas vezes em caso de divórcio? Que dizer do Senhor Juiz que se confina a questões processuais e, nessa perspectiva, não vê mal em que o verdadeiro pai da Esmeralda – ou seja, aquele que, pela filha, sacrificou tudo – vá para a prisão, porque o cedente do espermatozóide se lembrou, tarde e a más horas, que também queria ser pai da menina que antes lhe ia estragar a vida?
Portugal era assim, no tempo em que os animais falavam...
Publicado no Jornal "Brados do Alentejo" na edição de 26 de Janeiro de 2007

domingo, 14 de janeiro de 2007

A Divina Comédia

Muitas foram as vozes que se insurgiram pelo facto de o Director Geral dos Impostos, Paulo Moita de Macedo, ganhar uma “pipa de massa”. Manuela Ferreira Leite, Ministra das Finanças à data da nomeação, teve de ouvir das boas. Onde é que já se viu, um Director Geral ganhar para cima de 20 mil euros por mês? A explicação de tão elevado vencimento – cerca de 4 vezes mais que a Ministra que o nomeou – justificou‑se no facto de essa ser a retribuição auferida por Paulo Macedo enquanto quadro superior do Banco Comercial Português. As questões, ao que parece, terão sido colocadas de forma clara: ou a Manela lhe dava o guito que ele já ganhava no sector privado; ou ela ia cantar o S. Pedro para onde tinha cantado o S. João.
Posto isto, a Ministra anuiu. Acreditou na bazófia do homem que se dizia capaz de conferir eficácia à máquina fiscal, incrementando a sua eficiência sem necessidade de recorrer a procedimentos trauliteiros ou ofendendo a dignidade dos contribuintes. Poucos acreditaram que tal fosse possível. Mas… FOI! Hoje já ninguém duvida que a solução mais económica foi mesmo colocar alguém competente no comando na Direcção Geral dos Impostos. Não saiu barato mas, seguramente, saiu mais barato que as nomeações do costume. Todos ficámos a ganhar.
Prestes a findar a Comissão de Serviço de Paulo Macedo, surge a incógnita: irá ele continuar ficando a ganhar ¼ do actual vencimento? Não sei, nem quero fazer futurologia. A única coisa que sei é que, sinceramente, não lhe vejo vocação para Santo e receio que todos fiquemos a perder por pagar menos a alguém menos capaz. (Aliás, o homem de Santo não tem nada – nem é disso que precisamos – basta lembrar que também ele foi alvo de uma execução fiscal por não ter pago em 2002 a segunda prestação da Contribuição Autárquica de 2001).
Infelizmente, a mesquinhez e as invejas idiotas ainda abundam em Portugal. As pessoas preocupam‑se com o que cada um ganha sem olharem ao que cada um merece. Honestamente, discordo com um vencimento fixo de 20 mil euros por mês. De facto, preferia que Paulo Macedo ganhasse na base o mesmo que qualquer outro Director Geral e que tivesse um prémio caso fosse eficiente (como, efectivamente, foi). Não me importava que ele ganhasse 50 mil euros, desde que tal significasse milhões recuperados para os cofres dos Estado. Aliás, se tal política de prémios se estendesse a outros níveis, talvez fosse possível recompensar aqueles que, quer na administração pública quer no sector privado, estão a ser prejudicados pelos que menos contribuem. Vejam o seguinte exemplo: dois colegas, A e B, ganham o mesmo; A trabalha o dobro de B, logo… ganha METADE! Neste contexto, A deveria também ganhar o dobro de B, já que só assim ambos ganhariam o mesmo em função do trabalho realizado e, por conseguinte, só assim estariam em condições de igualdade.
Ad valorem é uma expressão em Latim já traduzida pela Redacção do “Brados”. Significa: segundo o valor; pelo valor; conforme o valor; de acordo com o valor; em função do valor. Isso é o que defendo.
“(…) et sic contra valorem opponit arrogantiam…” (Comentário de Benvenuto da Imola ao canto XVI da Divina Comédia - Inferno, de Dante Alighieri).
Publicado na edição de 12 de Janeiro de 2007 do Jornal "Brados do Alentejo" (http://www.bradosdoalentejo.com.pt)
Related Posts with Thumbnails

Número total de visualizações de páginas

CQ Counter, eXTReMe Tracking and SiteMeter

eXTReMe Tracker
Site Meter