quinta-feira, 11 de junho de 2009

"CARTA AOS ELEITORES DO CIRCULO DE CINTRA" - 1858 - Alexandre Herculano

A carta de Herculano é, como era norma naqueles tempos, muito longa... Longa em demasia para um blogue. Ainda assim, há passagens daquilo que se escreveu há 151 anos que permanecem actuais... em especial em Estremoz.

CARTA AOS ELEITORES DO CIRCULO DE CINTRA - 1858
Alexandre Herculano

«Senhores eleitores do circulo eleitoral de Cintra. Acabaes de me dar uma demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador (...): sinto que me não seja permittido acceitá-la.

Se tal escolha não foi um daquellas inspirações que vem ao mesmo tempo ao espirito do grande número, o que é altamente improvavel, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguem, se pessoas preponderantes nesse circulo, pelo conceito que vos merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prUdentemente, fazendo-o (...) e promovendo uma eleição Ínutil.

(...)

Duas vezes nos comicios populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha intima convicção de que nenhum circulo eleitoral deve escolher para seu representante individuo que lhe não pertença; que por larga experiencia não tenha conhecido as suas necessidades e miserias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegerem communidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de provincia para provincia, de districto para districto, e ás vezes de concelho para concelho.

(...)

E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitoria, vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o que mais é, padecem-no centenares de homens honestos e intelligentes que vivem obscuramente por essas villas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, elles são victimas da nossa absurda organisação; disso a que por antiphrase chamamos administração e governo. É entre taes homens que os circulos deveriam escolher os seus representantes: é entre elles que os escolherão por certo no dia em que comprehenderem que o direito eleitoral é uma espada de dous gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si e a seus filhos, mas com que tambem podem assassinar-se e assissiná-los.

(...)

Fortes tendencias para a eleição da localidade se manifestam já por muitas partes, e os governos e as parcialidades vêem-se constrangidos a transigir com esse instincto salvador. Se não me é licito gloriar-me de ter contribuido para elle se desenvolver, ser-me-ha licito, ao menos, applaudi-lo. É o primeiro passo dado no caminho do verdadeiro progresso social: cumpre não recuar.

Mas, pensando assim, como poderia eu, sem desmentir a minha consciência e as minhas palavras; sem trahir a verdade, sem vos trahir a vós proprios, acceitar em silencio o vosso mandato? É honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e morrer honrado.

Não haverá no meio de vós um proprietario, um lavrador, um advogado, um commerciante, qualquer individuo, que, ligado comvosco por interesses e padecimentos communs, tenha pensado na solução das questões sociaes, administrativas e economicas que vos importam; um homem de cuja probidade e bom juizo o tracto de muitos annos vos tenha certificado? Ha, sem dùvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para vosso mandatario?

(...)

Aconselho-vos, como acabaes de ver, uma cousa para a qual os estadistas de profissão olham com supremo desprezo, a eleição de campanario, só a eleição de campanario, a eleição de campanario, permitti-me a expressão, até a ferocidade.

(...)

Quando algum vos mendigar de porta em porta, e com o chapéu na mão, os vossos votos, respondei-lhe, como os eleitores dos diversos circulos do reino lhe responderiam, se o são juizo fosse uma cousa desmesuradamente vulgar:

«Somos uma pobre gente, que apenas conhecêmos as nossas necessidades, e querêmos por mandatario quem tambem as conheça e que n'ellas tenha parte; quem seja verdadeiro interprete dos nossos desejos, das nossas esperanças, dos nossos aggravos. Se os deputados dos outros círculos procederem de uma escolha analoga, entendemos que as opiniões triumphantes no parlamento representarão a satisfação dos desejos, o complemento das esperanças, a reparação dos aggravos da verdadeira maioria nacional, sem que isto obste a que se attenda aos interesses da minoria, que ahi se acharão representados e defendidos como se representa e defende uma causa propria. Na vulgaridade da nossa intelligencia, custa-nos a abandonar as superstições dos nossos páes: cremos ainda na arithmetica, e que o paiz não é senão a somma das localidades. Homem do absoluto, das vastas concepções, se a vossa abnegação chega ao ponto de sollicitar a deputação do campanario, fazei com que vos elejam aquelles que vos conhecem de perto, que podem apreciar as vossas virtudes, o vosso caracter. Certamente vós habitaes n'alguma parte. Se não quereis abater-vos tanto, arredae-vos da sombrado nosso presbyterio, que offusca o brilho do vosso grande nome. Sêde,como é razão que sejaes, deputado do paiz. Não temos para vos dar senão um mandato de campanario.»

(...)

A eleição de campanario é o symptoma e o preambulo de uma reacção descentralisadora, a descentralisação é a condição impreterivel da administração do paiz pelo paiz, e a administração do paiz pelo paiz é a realisação material, palpavel, effectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarchia, sem revoluções, de que não vem quasi nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessario começar pelo principio; é necessário que a vida pública renasça.

(...)

Os partidos, sejam quaes forem as suas opiniões ou seus interesses, ganham sempre com a centralisação. Se não lhes dá maior numero de probabilidades de vencimento nas luctas do poder, concentra-as n'um ponto, simplifica-as, e obtido o poder, a centralisação é o grande meio de o conservarem.

Nunca esperem dos partidos essas tendencias. Sería o suicidio. D'ahi vem a sua incompetencia, a nenhuma auctoridade do seu voto n'esta materia. É preciso que o paiz da realidade, o paiz dos casaes, das aldeias, das villas, das cidades, das provincias acabe com o paiz nominal, inventado nas secretarías, nos quarteis, nos clubs, nos jornaes, e constituído pelas diversas camadas do funccionalismo que é, e do funccionalismo que quer e que ha de ser.

(...)

Quereis encontrar o governo central? Do berço á cova encontrae-lo por todas as phases da vossa vida, raramente para vos proteger, de continuo para vos incommodar.

(...)

Não receeis que a descentralisação seja a disgregação. O governo central ha de e deve ter sempre uma acção poderosa na administração pública; há de e deve cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esphera dentro de justos limites, e os seus justos limites são aquelles em que a razão pública e as demonstrações da experiencia provarem que a sua acção é inevitavel. O ambito desta não deve dilatar-se mais.

(...)

Não me consentindo a brevidade do tempo e a urgencia de outras occupações expôr-vos todos os motivos por que dou tanta importancia á doutrina eleitoral que submetto á vossa consideração, não tenho direito a insistir em que a sigaes com a inabalavel firmeza com que intimamente creio que a deverieis seguir. N'essa hypothese, se vos apresentarem candidaturas de individuos extranhos ao vosso circulo, cujo caracter não possaes avaliar por vós mesmos, consenti em que vos lembre um arbítrio para não serdes ludibriados. Consultae aquelles que pessoalmente os conhecerem, mas só aquelles, que, pagando tributos, e não disfructando-os, viverem no meio de vós ha longos annos do producto do seu trabalho ou da sua propriedade, e que gosarem de solida reputação de intelligencia e de probidade. Como homens de bem, e como tendo interesses analogos aos vossos e confundidos com os vossos, elles não podem enganar-vos. Escolhei o que elles escolherem; regeitae o que elles regeitarem. Vença qual partido vencer, tereis ao menos um procurador honesto; porque todos os partidos tem no seu seio gente honrada. Escusado é dizer-vos o que n'isso haveis de ganhar.

(...)

Depois, quando alguem, que accidentalmente se ache no meio de vós, sem casa, sem bens, sem familia, sem industria destinada a augmentar com vantagem propria a riqueza commum, e só porque o seu talher na mesa do tributo ficou posto para esse lado, se mostrar demasiado sollicito em nobilitar o vosso voto pela escolha de algum celebre estadista, em que nunca talvez ouvistes falar, ou em livrar-vos de elegerdes algum mau cidadão, cujas malfeitorias escutaes da sua bôca pela primeira vez, voltae-lhe as costas. Padre, militar, magistrado, funccionario civil, seja quem for, esse homem que tanto se agita, afflicto pela vossa honra eleitoral, pelos vossos acertos ou desacertos politicos, póde ser um partidario ardente e desinteressado; mas é mais provavel que seja um hypocrita, um miseravel, que já tenha na algibeira o preço do vosso ludibrio, ou que, por serviços abjectos, espere obter, ou dos que são governo, ou dos que querem fazer o immenso sacrificio de o serem, a realisação de ambições que a consciencia lhe não legitima, e ácerca das quaes só podeis saber uma cousa: é que as haveis de pagar.

Permitti-me, senhores eleitores, que termine esta carta, já demasiado extensa, reiterando-vos os protestos da minha gratidão pela vossa bondade para comigo, e assegurando-vos que, se me fallece ambição para acceitar os vossos votos contradizendo as minhas opiniões, sobeja-me avareza para buscar não perder jámais um ceitil da vossa estima.»

1 Comentários:

Marilisa Crespo disse...

Visão clara e sábia...se todos fossem assim e se
os eleitores tivessem a sageza(sa?) de seguir estes conselhos...como tudo seria melhor...para TODOS !

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