quinta-feira, 30 de abril de 2009

Ribeira das Águas Belas

Costuma dizer-se que quem conta um conto acrescenta um ponto. Às vezes, nem é por mal nem por qualquer intenção deliberada de distorcer a verdade. Quando, involuntariamente, alguém reproduz a terceiros um relato de forma diferente da original, tal pessoa poderá ter sido vítima de um erro de percepção que a Psicologia tipifica de várias formas: (1) acentuação perceptiva – quando as pessoas interpretam de forma exagerada a mensagem recebida –; (2) defesa perceptiva – quando o subconsciente bloqueia uma informação inesperada ou improvável –; (3) selectividade perceptiva – quando o cérebro apenas vê o bom ou o mau, o que se teme ou que se deseja, o que se gosta ou o que se detesta, desprezando os elementos da informação em sentido contrário –; e, finalmente, (4) a distorção perceptiva – a qual ocorre quando o verdadeiro significado da mensagem não é adequadamente percebido e acabada reinterpretado de acordo com a forma que faz sentido para o receptor da mesma.


A lenda que vos vou contar – como qualquer lenda – mistura factos históricos, narrados pelas crónicas da época, com outros alegados acontecimentos, não comprováveis, cujos relatos podem ter sofrido alterações à medida que iam sendo repassados oralmente de geração em geração. Esta história ouvia-a do meu pai. Do mesmo modo, também ele a terá ouvido a outros ainda mais antigos…


Trata-se de um relato de uma batalha em que esteve envolvido Nuno Álvares Pereira. Ao que parece, quando este e o seu pequeno exército saíram ao encontro dos invasores espanhóis, já estava consciente que a mera bravura dos seus homens poderia não ser suficiente para levar a bom termo a contenda. Portanto, havia que compensar com astúcia a desvantagem em número e em armamento em relação às forças invasoras. Assim, usou o escudeiro espanhol que lhe propôs a rendição e a passagem para o lado espanhol para montar o ardil. A artimanha foi responder de forma provocatória aos espanhóis impelindo-os a saírem ao seu encontro. Tal permitiu que Nun’Álvares escolhesse o terreno para o confronto, elegendo uma várzea alagadiça junto a uma ribeira dissimulada por vegetação alta. Para dar a ideia de que estava a dar descanso às suas tropas, mandou apear a sua cavalaria, ocultou lanças no solo não visíveis de quem vinha à carga a galope e, ao mesmo tempo, emboscou os seus archeiros de ambos os lados do vale. Quando a cavalaria adversária se atolou na várzea sofreu pesadas baixas, quer pelo efeito das lanças ocultas quer pelas flechas dos archeiros. Tal facto criou desânimo nos adversários, levando-os a debandar. O lugar da contenda chama-se hoje Atoleiros.


Após a batalha, Nun'Álvares saciou-se na água ensanguentada da ribeira. Quando lhe perguntaram como era a água naquelas condições ele terá dito: É bela! Tal ribeira chama-se hoje, Ribeira das Águas Belas.

Lembram-se desta?

A História de Portugal tem momentos delirantes. Há pouco tropecei neste episódio acidentalmente e não resisti em colocá-lo aqui. Espero que se divirtam tanto como eu me diverti, quando recordei o anúncio de "greve" do 6.º Governo Provisório, em Novembro de 1975, feito pelo então Primeiro-Ministro, Almirante Pinheiro de Azevedo.

domingo, 26 de abril de 2009

No dia da canonização

Não gostaria de deixar terminar este dia 26 de Abril de 2009 – dia da canonização de Frei Nuno de Santa Maria – para evocar a ligação de histórica de Nuno Álvares Pereira à nossa cidade de Estremoz.
Assim, reproduzo aqui um excerto de um texto editado pela Fundação Aljubarrota relativo à Batalha dos Atoleiros – recentemente celebrada pelo Município de Fronteira – no qual se faz referência a episódios vividos em Estremoz.
“Dirige-se depois para Estremoz, onde teve conhecimento que os castelhanos já estavam no Crato. Mandou então chamar gente dos arredores de Estremoz, bem como de Elvas e de Beja. Juntou estas forças no Rossio de São Braz em Estremoz, onde passou revista à tropa, composta por cerca de 300 cavaleiros, 1.100 homens a pé e 100 besteiros.
D. Nuno não fraquejou perante a grande desproporção de forças que teria de enfrentar. Opinião contrária tinham contudo os capitães que estavam debaixo das suas ordens, que tentaram dissuadi-lo a combater contra um exército muito superior e onde se encontravam dois dos seus irmãos. Para que os seus homens não tivessem dúvidas de que não hesitaria em combater os castelhanos por aí se encontrarem dois dos seus irmãos, D. Nuno referiu que combateria o exército estrangeiro, mesmo que aí estivesse o seu pai. Referiu depois:
“Amigos! Bem sabeis que o Mestre me enviou a esta terra para que com a ajuda de Deus, vós e eu a defendamos de algum mal ou dano que os castelhanos lhe queiram fazer; e que esse feito lhes daria, para sempre, grande honra e bom nome; Grande bem faremos também a nós próprios em lutar, ao defender as nossas terras e bens, de que somos detentores”.
Ouvindo estas palavras, muitos que o ouviam disseram-lhe que no dia seguinte dariam a sua resposta, quanto a participarem no combate. Essa resposta acabou contudo por ser negativa. Perante esta resposta ficou D. Nuno muito irritado, e falando junto a um riacho que então havia no Rossio de São Braz,
[1] disse:
“Amigos! Por serem muitos os castelhanos e grandes senhores, tanto maior honra e louvor vos virá de os vencerdes; e quanto a estarem com os castelhanos os meus irmãos, eu vos digo que defenderei a terra que me criou, e para terdes a certeza de que assim é vos prometo que, com a ajuda de Deus, serei o primeiro a iniciar o combate; e quanto a eles serem muitos e nós poucos, já muitas vezes sucedeu os poucos vencerem os muitos, porque a vontade de Deus é superior à dos homens; Rogo-vos assim que os que comigo quiserem ir a este combate que passem para além deste riacho, e os que não quiserem que fiquem deste lado". Ouvindo isto, disse a maioria dos que o escutavam que queriam ir com ele.
No dia seguinte, 6 de Abril de 1384, D. Nuno mandou tocar as trompetas pelas 6 horas da madrugada, ouviu missa
[2] e depois parte com a sua gente em direcção a Fronteira, que estava então a ser cercada pelos castelhanos vindos do Crato. Parte D. Nuno com um exército de 1.500 homens. Pequena hoste, face á dimensão da tarefa que a aguardava.”
Aproveito ainda para referir que a Igreja dos Mártires foi mandada construir por Nuno Álvares Pereira para evocar os seus “bravos alentejões” – no dizer de Fernão Lopes – que pereceram nas batalhas em que esteve envolvido a partir de Estremoz (mártires, portanto, na salvaguarda da independência nacional em relação a Castela).
[1] Antiga denominação do actual Rossio Marquês de Pombal. Contudo, à época dos factos, é francamente duvidoso que aquele espaço já se denominasse daquela forma.
[2] Existe uma capela do lado nascente do Rossio que faz referência a tal missa, porém datando-a em 5 de Abril, ou seja, na véspera. Porém, apesar da lápide aposta naquela capela, há quem alegue que esta é de construção posterior e que a mesma foi salva da demolição justamente graças aquela evocação a Nuno Álvares Pereira – se quiserem, outro milagre. Ao que parece a ermida onde terá sido celebrada a missa em referência situar-se-ia noutro local nas imediações do rossio, logo, já desaparecida.

sábado, 25 de abril de 2009

3 Ideias para enfrentar a crise…

John Fitzgerald Kennedy terá dito um dia que a palavra crise em chinês é composto por dois ideogramas, sendo que o primeiro se traduz por "perigo" e o segundo por "oportunidade". No caso português, para além de todos os riscos que se correm em cenário de crise económica generalizada, acresce o "perigo" de sermos governados por pessoas para quem a propaganda, as aparências e o faz-de-conta valem sempre mais que a divulgação da realidade que permite às pessoas tomarem decisões racionais. Portanto, a primeira prioridade é falar verdade aos portugueses.


Por outro lado, impõe-se dizer que a crise nacional precedeu a crise internacional. Bem antes de a situação se agravar para a generalidade dos europeus, já nós, portugueses, andávamos a "patinar" há bastante tempo. Existe um desequilíbrio estrutural na economia portuguesa para o qual tem que ser encontrada uma resposta. Sempre que o rendimento cresce – de forma real ou artificial – a consequência mais imediata é o crescimento das importações ter maior expressão que o crescimento das exportações, gerando um défice externo insustentável que propicia condições para o surgimento da crise seguinte. Portanto, a prioridade das políticas públicas deve estar mais orientada para a substituição das importações. Há que robustecer a economia doméstica.


Terceira medida: prevenir a crise social latente. Governar para as pessoas é apoiar os mais desprotegidos no momento em que mais precisam. Pior que não criar riqueza é permitir sentimentos de injustiça social, que derivam da constatação de existirem pessoas que se permitem realizar gastos em bens de luxo e sumptuosos enquanto outros passam sérias dificuldades. O problema agrava-se quando se vêem dirigentes – públicos e privados – beneficiarem com o despedimento das pessoas, como se fossem descartáveis. Dispensaram-se funcionários públicos – os mobilizados, alguns dos quais não auferem sequer o salário mínimo – mas mantêm-se mordomias a certas elites completamente injustificadas. Uns trabalham toda a vida sem conseguirem garantir a reforma por inteiro, enquanto outros adquirem tal direito após alguns meses de contribuições.


Concluo com a referência à oportunidade que coexiste com a crise: este é ano de eleições!




Publicado na edição de 23Abr2009, na secção "Mesa Redonda", do Jornal Ecos.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dois vídeos

O supremo tribunal federal norte americano admite os vídeos como elementos de prova no âmbito dos processos judiciais. O vídeo seguinte - que, aliás, não é agradável de ver - foi admitido como documento único num processo instaurado a um agente da polícia, por abuso de autoridade.

O que aqui está em causa não é se o agente agiu bem ou mal, se tinha ou não intenção de molestar deliberadamente a vítima. O que está em causa é que vídeo foi admitido como "prova".



O vídeo seguinte respeita ao caso Freeport. O objectivo do mesmo não é demonstrar que Sócrates é culpado do que quer que seja. O que se pretende colocar em evidência é que, salvo melhor opinião (ou informação), em Portugal as imagens captadas sem o consentimento ou conhecimento do arguido são consideradas nulas e, por conseguinte, não admissíveis como prova em processos judiciais. A jurisprudência portuguesa está repleta de inúmeros casos em que, apesar de ser evidente a existência de ilícitos criminais, supostamente aferíveis e comprováveis através de imagens de vídeo, os réus acabam absolvidos sempre que não existam meios de prova adicionais. Estou a recordar-me de um caso em que a videovigilância de uma empresa provava comportamentos ilícitos por parte de uma trabalhadora. Pois bem, quem acham que pagou as custas do processo? Advinharam: a entidade patronal. Mas sabem que mais? Se um ou uma colega tivesse visto o ílicito - mesmo que a arguida não soubesse que tinha sido vista nem tivesse autorizado tal terceira pessoa a vê-la - e quisesse testemunhar tal facto, tal testemunho já era admitido. A justiça portuguesa parece preferir a denúncia - ou mesmo a delação maldosa - à absoluta imparcialidade de uma imagem de vídeo.

Concluo reafirmando o alerta anterior. Pela minha parte, este vídeo não pretende "culpar" Sócrates. A única coisa francamente evidente nele é que quem o gravou sabia que alguém se tinha "abotoado" com dinheiro do Freeport. Sabe-se também que desconfiava do Sr. Charles Smith, caso contrário não tinha feito o vídeo. Agora que deve ser averiguada a veracidade das afirmações deste, disso não tenho a menor dúvida. A única coisa que sei é que este vídeo em Inglaterra é admitido como prova; e que em Portugal não.

A minha reflexão tem apenas a ver com o sistema judicial português e a sua mais que comprovada reduzida eficiência.


Piada

É apenas uma piada... embora eu saiba que vai haver quem não ache graça.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

ad valorem III

Parece que foi ontem mas a verdade é que já faz 3 anos que iniciei a coluna ad valorem.


No primeiro artigo afirmei que ad valorem reflecte "a convicção de que as pessoas têm valor e de que têm valores". Esta profissão de fé – chamemos-lhe assim – continua inalterada. Tem subjacente uma miscelânea de visões doutrinárias e de filosofias que ao longo da vida fui bebendo em "várias fontes". Todavia, ao contrário do que sucede noutras crenças, não tem o transcendental por objecto mas sim, e apenas, a valia humana. Algo bem terreno, portanto.


E porque acredito eu na valia humana? Porque o ser humano quando nasce vem dotado de um conjunto de aptidões naturais – lógico-matemática, linguística, espacial, musical, físico-cinestésica, intrapessoal e interpessoal. De uma maneira geral, todos nós nos destacamos positivamente em pelo menos uma destas vertentes. Dito de outro modo, somos quase sempre bons em alguma coisa (desde que queiramos trabalhar tais aptidões, transformando-as em capacidades e competências). Tal não implica que tenhamos uma capacidade lógico-matemática de um Einstein, uma capacidade linguística de um Camões, uma capacidade de organização espacial de um Souto Moura ou de um Siza Vieira, uma capacidade musical de um Mozart, uma capacidade físico-cinestésica de um Joaquín Cortés ou de um Cristiano Ronaldo, uma capacidade intrapessoal de um Daniel Sampaio ou uma capacidade interpessoal de um Barack Obama. No entanto, todos temos potencial para sermos suficientemente bons no desenvolvimento de uma qualquer actividade produtiva ou no exercício de uma profissão.


O reverso da medalha está no facto de, do mesmo modo que temos potencial para ser bons em alguma coisa, também invariavelmente revelamos maiores dificuldades em uma ou mais áreas. Ainda assim, também aqui há uma boa notícia: quem revela menores aptidões naturais num qualquer domínio tem a possibilidade de as compensar com esforço extra. Tal como a massa muscular, também as aptidões podem ser exercitadas. Podemos demorar mais tempo que os dotados a apreender certos saberes e certas competências, porém, uma vez adquiridos, sabemos tanto e somos tão capazes como qualquer outro que à partida estava em vantagem. Afinal, o que conta não é a posição à partida mas sim a posição à chegada.


Posto isto, concluo: o problema de algumas pessoas radica, por um lado, na descrença no seu próprio potencial e, por outro, na ausência de motivação para o desenvolver. Para estas, a mensagem de Paul Arden é aqui oportuna: "o que importa não é quão bom tu és, mas sim quão bom tu queres ser!". É preciso crer e querer.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Campo Aberto

O poema "Campo Aberto" foi publicado em 1951, altura em que o seu autor, Sebastião da Gama, integrava o quadro da Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Em homenagem ao autor – precursor de práticas pedagógicas "arrojadas" para a época – o jornal da Escola passou a denominar-se, justamente, Campo Aberto. Mais tarde, com a reforma Leite Pinto – Galvão Teles (1967), quando o Ciclo Preparatório do Ensino Técnico se fundiu com o seu homólogo liceal, a Escola Preparatória então autonomizada da Escola Técnica (ainda que partilhando a mesmas instalações) escolheu para patrono o nome de Sebastião da Gama. Escolhas justas e inteiramente merecidas.

Em 1972, o meu primeiro contacto com o Campo Aberto não foi com o poema, foi com o jornal antecessor do actual "Notícias da Rainha". Ler notícias sobre personagens que víamos todos os dias fascinava-me, assim como me deliciava com a poesia, a sátira, as anedotas ou meros relatos de situações engraçadas que vivíamos no dia-a-dia. Aqueles que ousavam escrever um artigo técnico eram elevados à condição de divindades intelectuais. Por outro lado, eu estava na Escola Sebastião da Gama, mas Sebastião da Gama não era nada para mim para além do nome da escola. Foi mais tarde que descobri a razão de ser daqueles… "nomes".

Sebastião da Gama era natural de Vila Nogueira de Azeitão. Aos 14 anos foi-lhe diagnosticada a tuberculose óssea que iria custar-lhe a vida. Ciente que iria ter uma morte prematura interiorizou a sua sina exaltando a natureza e a vida de forma exuberante. Pode ter sido curta, mas viveu-a intensa
mente, apesar de ter sempre a morte a pairar por perto. O "Poema da minha esperança" é exemplar: «Que bom ter o relógio adiantado/…/ Tic-tac…/ (Como eu rio, cá p'ra dentro/ de esta coisa divertida: / ele a julgar que é já o resto/ e eu a saber que tenho sempre mais/ três quartos de hora de vida)».

A Estremoz chegou em 1950, após ter concluído a profissionalização como professor do ensino técnico. Foi na EICE que se estreou como "efectivo". A ligação a Estremoz ficou bem patente tanto nos seus poemas como no seu Diário. "Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu". A paisagem de Estremoz inspirou-o ao ponto de escrever "Aonde estou não há Outono". No entanto uma das descrições mais extasiantes foi feita pela sua esposa alguns anos após a sua morte. Foi quando ela viu "nascer" um poema. «Era dia de S. João (24Jun951). Estávamos em Estremoz. Saímos da cidade e subimos a um pequeno monte. (…) A tarde começou a descer, e eu ouvia um sussurro. (…) A certo momento, olhou-me nos olhos e recitou-me "Crepuscular"».
Sebastião da Gama escreveu várias "Cartas de Estremoz" para o Jornal do Barreiro e, pelo menos 3 vezes, no Brados, a última das quais foi publicada 4 dias antes de morrer. A 5 de Fevereiro de 1952 deixou definitivamente o "Largo do Espírito Santo, 2 – 2.º" rumo ao Hospital de S. Luís, em Lisboa, onde viria a falecer após 2 dias de intensa agonia. Tinha 27 anos.
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