Uma das questões que maior curiosidade suscita às pessoas é o
significado das palavras.
Para resolver rapidamente o problema temos por hábito
recorrer a um dicionário. E fazemos nós muito bem… na generalidade dos casos, isto
esclarece muito bem a dúvida com que nos debatemos.
O dicionário reproduz o entendimento que se tem, geralmente,
sobre o significado de uma dada palavra num determinado momento histórico. Porém,
o dicionário comum também tem limitações, já que nada nos conta sobre a origem do
étimo e de qual o significado que a palavra original tinha no contexto em que
era usada.
Assim, se quisermos aprofundar o conhecimento sobre uma
determinada palavra já temos de nos socorrer de um dicionário etimológico. Ainda
assim, tal pesquisa, se bem que na generalidade dos casos se revele deveras
gratificante, tem um inconveniente: as palavras têm o significado que as
pessoas lhe atribuem; e este muda ao longo dos tempos e dos lugares. Por
conseguinte, agarrarmo-nos a uma definição etimológica poderá corresponder a um
erro… um erro erudito, se quiserem, mas sempre e tão-só um erro: as palavras
hoje são usadas em contextos que podem ser diferentes e, portanto, não se
estranhe que sejam também diferentes os significados que lhes são atribuídos.
Para descer ainda mais fundo na análise, a mera linguística
revela-se insuficiente. Repetindo: cientes que as palavras têm os significados
que as pessoas lhes atribuem, nos contextos históricos em que são usadas, por
vezes é preciso saber alguma coisa de outras ciências que estudam as realidades
em que tais vocábulos são empregues. Chegados aqui, de pouco adianta a consulta
a dicionários já que estes, as mais das vezes, não conseguem traduzir a
especificidade da área do conhecimento envolvida no emprego de tais palavras.
Consultar um dicionário etimológico ajuda, mas… se não percebermos do mister, continua a não chegar.
Não se estranhe por isso que dicionários reputados, assim
como sítios na internet especializados no esclarecimento de dúvidas acabem, por
vezes, por induzir em erro aqueles que a eles recorrem. Como se diz na anedota
que quase todos conhecemos, “Errar é o Mano”, logo daí não advirá mal maior ao
mundo, que mais não seja porque tais erros estão minimamente “fundamentados” em
buscas em dicionários, em debates acalorados em academias linguísticas e, por
vezes, até em obras literárias. Porém, muito raramente tais fundamentos advêm
de obras técnicas e/ou científicas, históricas ou actuais, escritas por – como
se dizia na Faculdade de Direito de Lisboa – “ursos”.
Portanto, tais erros são, apesar de tudo, desculpáveis. O que
já não é desculpável é a reacção de alguns eruditos quando alguém lhes
demonstra que estão errados. Isso sim, é lamentável. Se “presunção e água benta
cada um toma a que quer”, já para a humildade também devia haver uma quota
mínima, da mesma forma que o salário mínimo pretende preservar a dignidade
humana nas relações laborais.
Vou dar dois exemplos.
1.
“Não tem nada a ver” – que significa, hoje, não
ter qualquer relação um tema com qualquer outro chamado à colação, ainda que
sem propósito. Não está em causa o significado actual da expressão. Está em
causa o repúdio veemente que se fez da expressão “não ter nada a haver”,
classificando-a como idiotice pura e simples. A verdade é que esta última
expressão existiu efectivamente – se bem que hoje em desuso – e não carece de
verosimilhança a possibilidade de “não ter nada a ver” derivar precisamente de
“não ter nada a haver”. Tal hipótese está fundada num fenómeno psicológico
denominado “distorção perceptiva”, segundo o qual quando o verdadeiro
significado da mensagem não é adequadamente percebido, acaba reinterpretado de
acordo com a forma que faz sentido para o receptor da mesma.
Importa esclarecer que os doutos
cérebros letrados em letras foram informados que as suas conclusões se
revelaram precipitadas porquanto, no mínimo, foram insuficientemente
fundamentadas. Todos quantos estudaram contabilidade conhecem o seu princípio
básico: “quem recebe deve; quem entrega tem a haver”. É por esta razão que os
fólios do Razão tinham inscritas as palavras DEVE e HAVER em cada uma das suas
extremidades. Existem vários acórdãos do Tribunal do Comércio de Lisboa em que
a expressão “não tem nada a haver” é usada amiúde. Referia-se esta a pessoas
que não detendo direitos de crédito sobre o devedor também não detinham,
consequentemente, legitimidade legal para intervir no processo, pelo que dele
acabavam sendo excluídos. Que pena que os doutos sábios letrados em letras não soubessem isto... talvez não tivessem classificado a expressão “não ter nada a haver” como
uma mera anormalidade.
2.
“Salários, Ordenados e Vencimentos” – Comecemos
por referir que hoje estes vocábulos podem, todos eles, ser considerados
sinónimos de retribuição remuneratória. A actual legislação laboral
impede, aliás, que seja de forma diferente. Porém, se eles continuam a ser
usados em diferentes contextos alguma razão deve haver para isso.
Então as razões são estas:
Salário – Se bem que a expressão
derive etimologicamente do pagamento da retribuição do trabalho em sal – moeda
mercadoria por excelência no período áureo da civilização babilónica – tal
pagamento era feito na razão directa da quantidade de trabalho prestado. Aliás,
no início do séc. XX, nas minas de sal-gema de Loulé, ainda se retribuía os
mineiros com sal ao invés de moeda metálica ou de papel, porém na exacta
proporção da quantidade de minério extraído. Era, portanto, um custo variável,
com uma taxa unitária fixa à hora, ao dia, ao quilo ou à tonelada, prestação de
trabalho essa da qual se prescindia sem mais delongas logo que não fizesse
falta.
Ordenado - Os salários estavam
associados ao conceito de mão-de-obra directa, variável por natureza, por
oposição aos ordenados, que era uma retribuição mensal fixa, onde se pagava
pela disponibilidade para trabalhar e não pelo trabalho (ou pelos seus
resultados) em si. Os ordenados eram classificados de mão-de-obra indirecta, e
eram usados para retribuir os contramestres, os capatazes, os escriturários e
outros trabalhadores cuja relação laboral com a entidade empregadora era
estável (ou, mais rigorosamente, mais estável que a dos meros operários).
Vencimento – Em muitos países o
vencimento tinha uma base anual, ainda que paga em duodécimos, e era inscrito
no orçamento da administração pública para retribuir os seus servidores civis.
A principal diferença decorria de o montante da retribuição estar fixado na lei
– ao contrário do que sucedia no sector privado – e “vencia-se” (numa acepção
jurídico-legal e de contabilidade pública) periodicamente no final de cada mês
do ano orçamental (o qual não coincidia necessariamente – nem ainda coincide em
alguns países – com o ano civil).