Antes que pensem que estou a falar duma lei contabilística que enuncia a prevalência da substância sobre a forma, esclareço que a crónica de hoje não tem nada a ver com isso. Aliás, vou procurar demonstrar exactamente o contrário, ou seja, que numa perspectiva de longo prazo é a forma que prevalece sobre a substância. Confusos? Não fiquem, esclareço já.
Hoje escrevo sobre a inconsistência inúmeras vezes verificada entre o discurso e a prática. Se preferirem, podem considerar que vou escrever sobre aquilo que os políticos dizem e sobre aquilo que os políticos fazem. Creio ser pacífica a conclusão de que uma e outra coisa nem sempre são coincidentes…
Para os contemporâneos da decisão política (e que dela colhem os benefícios ou os inconvenientes) aquilo que verdadeiramente conta é o que observam e sentem no momento em que esta produz efeitos. Se quiserem, é a essência percebida (justa ou injusta, não interessa) que prevalece. Porém, numa óptica histórica, os efeitos das decisões políticas são encaradas de forma desapaixonada e, como tal, são avaliadas de uma forma mais objectiva. Neste contexto, é a forma, ou seja, aquilo que ficou registado, que tende a prevalecer (por alguma razão, a maioria dos heróis estão mortos…).
Vou dar alguns exemplos. John Locke é historicamente considerado como o precursor da defesa dos direitos das pessoas relativamente às arbitrariedades do poder. O que pouca gente sabe é que a máxima que defendeu de que os governados têm direito à sublevação contra os governantes tiranos, foi escrita por encomenda. Quando Locke pôs em causa a legitimidade sucessória da realeza, estava a dar corpo ao receio de que um rei católico apostólico (o futuro Jaime II) viesse a sentar-se no trono de Inglaterra. Até Locke estava longe de imaginar que o seu texto tinha ganho vida própria, muito para além daquilo que ele pudesse ter sentido ou pensado. Mais tarde, quando as colónias americanas entraram em conflito com a coroa britânica – por causa do pesado fardo fiscal que recaía sobre os colonos para pagarem a guerra dos setes anos (guerra que, entre outras coisas, permitiu que hoje também se fale inglês no Canadá) –, Thomas Jefferson, por muitos considerado o pai da nação americana, pegou nos textos de Locke e, substituindo algumas palavras e contextualizando outras, defendeu que "todos os homens são criados iguais, dotados (…) de direitos inalienáveis" na Declaração da Independência de 4 de Julho de 1776… ao mesmo tempo que era fazendeiro na Virgínia proprietário de escravos. Na revolução francesa, os artífices da declaração dos direitos do homem e do cidadão – a qual está na génese da actual Declaração Universal dos Direitos do Homem –, os jacobinos Robespierre e Marat, foram os mesmos que determinaram que o cutelo da guilhotina caísse sobre as cabeças que ousaram discordar da mentalidade dominante.
No longo prazo, o que prevaleceu afinal, a forma ou a substância?
Publicado na edição de 27Mai2010 do jornal Brados do Alentejo
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