quinta-feira, 10 de julho de 2008

Arranja-me um emprego

Na época em que Sérgio Godinho desfrutou do seu maior sucesso artístico eu, confesso, nem sequer o conseguia ouvir. Ou melhor, esforçava-me por ignorá-lo. No entanto, a verdade é que mesmo sem o querer ouvir ouvia-o e, mesmo sem querer dar atenção ao que dizia (cantando), acabava por reter a mensagem.

Com o tempo tudo passa, tudo muda, tudo se aprende, tudo se resolve. Hoje já sou capaz de apreciar a música de Sérgio Godinho e até de fazer uso da letra de uma das suas criações para dar o mote ao tema de hoje. A sátira por ele feita às relações laborais no "capitalismo burguês" vai ser-me útil para evidenciar que também estas estão a mudar, tornando progressivamente desajustados alguns discursos do passado.

Num contexto em que trabalho era sinónimo de sobrevivência – por oposição à miséria e à fome – afigurava-se natural uma relação de subserviência do empregado em relação à entidade patronal, e de paternalismo desta para com os seus colaboradores. "Se dizia o que penso, eu posso estar atento / E pensar para dentro / Se queres que seja duro, muito bem eu serei duro / Se queres que seja doce, serei doce, ai isso juro / Eu quero é ser o tal / E como o tal reconhecido / Assim, digo-te ao ouvido / Arranja-me um emprego".

Conseguir um emprego era visto como um sinal de estabilidade financeira e emocional ("emprego para toda a vida"), como uma oportunidade de progressão na carreira associada à visão de colher os benefícios da senioridade e, finalmente, uma aspiração legítima a uma reforma confortável no final da vida. Em contrapartida, o empregador exigia lealdade, disciplina e subordinação à autoridade hierárquica e, como é evidente, um nível de produtividade mínimo.

Porém, gradual mas sistematicamente, aquele quadro de referência tem vindo a alterar-se. Primeiro porque o Estado-Providência afastou o espectro da fome, pelo que as novas gerações se foram mostrando crescentemente indisponíveis para aceitar toda a espécie de trabalhos. Por outro lado, porque se começa a perceber de forma cada vez mais evidente que essa "estória" do emprego para toda a vida constitui chão que deu uvas, tal como a aspiração de uma reforma garantida. Esta nova mentalidade tem vindo a pôr em causa a "lealdade cega" que as gerações anteriores manifestavam em relação ao empregador.

Do lado das organizações também as perspectivas se alteraram. De muito estruturadas e hierarquizadas – de onde se esperava que os líderes resolvessem todos os problemas e, na base, que os colaboradores não fizessem ondas que ofuscassem os seus superiores hierárquicos – passou-se a estruturas flexíveis, ao trabalho de equipa em projecto e à delegação de competências.

Neste novo quadro de referência o trabalho é encarado como um mercado, no qual só vende quem conseguir aportar valor para a organização. Mais vale ser leal à própria carreira que a um pai tirano.

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